O artigo 156, CF, determina competir aos municípios instituir imposto sobre transmissão “intervivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição.
Uma polêmica recente surgiu com a decisão do STJ, no Tema Repetitivo 1.113, cujo relator foi o ministro Gurgel de Faria (REsp 1.937.821/SP), que, dentre outras disposições, entendeu que a base de cálculo do ITBI não poderia ser a mesma do IPTU, embora, nas normas respectivas, seja usada a mesma expressão “valor venal”. De fato, o CTN, que veicula normas gerais tributárias (artigo 146, III, CF), estabelece que a base de cálculo do IPTU é o valor venal do imóvel (artigo 33). Verifica-se que o vetusto “imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos”, que era exclusivamente de competência dos estados, também tinha como base de cálculo o valor venal dos bens ou direitos transmitidos (artigo 38). Este segundo imposto necessita de uma leitura modulada, pois antes da CF/88 residia apenas nos estados a competência tributária para a cobrança de imposto de transmissão, fosse ele “intervivos” ou “causa mortis”. Em 1988 isso foi cindido e os municípios passaram a ter a competência para tributar as referidas operações “intervivos” (ITBI), remanescendo nos estados apenas a competência “causa mortis”, incluindo doações (ITCMD).
A decisão do STJ cindiu a interpretação do que seja “valor venal” para fins de IPTU, distinguindo-a do ITBI. Sabe-se que, como padrão, os municípios usam o mesmo cadastro imobiliário para os dois impostos, que se vale de informações cadastrais referentes à localização (bairro), metragem, tipo de construção etc. Será que o STJ decidiu corretamente?
Consta do acórdão que o valor venal, para fins de ITBI “não impede que a avaliação de mercado específica de cada imóvel transacionado oscile dentro do parâmetro médio, a depender, por exemplo, da existência de outras circunstâncias igualmente relevantes e legítimas para a determinação do real valor da coisa, como a existência de benfeitorias, o estado de conservação e os interesses pessoais do vendedor e do comprador no ajuste do preço”. Está correta a lógica exposta, que parte da concepção de que uma coisa é o valor da transação, outra é o valor do bem. Todos sabemos que um imóvel pode estar cadastrado no município como tendo “valor venal” de R$ 100,00, mas, por diversos motivos, acaba sendo vendido por R$ 200,00 ou por R$ 80,00. Isso implica em um montante diferente do “valor venal cadastrado”, e se aproxima do “valor praticado”, que, como visto, pode ser superior ou inferior.
Como corolário desse entendimento, consta do acórdão que “em face do princípio da boa-fé objetiva, o valor da transação declarado pelo contribuinte presume-se condizente com o valor médio de mercado do bem imóvel transacionado, presunção que somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto, incompatível com a realidade”. O acórdão debate questões referentes às modalidades de lançamento do ITBI, as quais não abordarei para fins da presente exposição.
O acórdão conclui no sentido de que “a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação, e que o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN), sendo que o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.
Não é necessário dizer que os municípios estão contestando a decisão, pois, dentre outros argumentos, (1) as normas contemplam a mesma expressão “valor venal” como base de cálculo dos dois tributos, portanto, devem usar o mesmo cadastro imobiliário; (2) alegam que está sendo desnaturada a tributação sobre a propriedade, transformando o ITBI como uma espécie de IVA, cuja característica é a transmissão de bens, fazendo equivaler a uma tributação sobre o consumo, e (3) embora não seja dito, existe a pressuposição de que os contribuintes irão declarar a operação de transmissão imobiliária por valor inferior à real, visando pagar menos ITBI. Para compreensão dos argumentos dos Fiscos municipais sugere-se a leitura dos textos de Ricardo Almeida, em três partes (https://www.conjur.com.br/2022-set-14/ricardo-almeida-ribeiro-silva-itbi-diva2), com ênfase em direito processual.
Entendo que a decisão do STJ é correta, ao distinguir a base de cálculo do ITBI, afastando-a da base de cálculo do IPTU, embora, em ambos, seja referido como base de cálculo o “valor venal”.
O IPTU é um tributo sobre a propriedade, que é cobrado pelo simples fato de alguém ser proprietário de um bem imóvel (dentre outros requisitos e características) e permanecer proprietário desse bem imóvel. Dessa forma, a cada ano o município cobra o IPTU independente da capacidade contributiva e das condições subjetivas dos contribuintes, com base na planta genérica de valores, que dá base ao cadastro imobiliário. Aqui se tem a propriedade em uma situação estática, isto é, cobra-se um valor pelo simples fato de o contribuinte manter a propriedade, o que justifica o uso de um cadastro imobiliário para amparar o conceito de “valor venal”.
Já o ITBI é verdadeiramente um tributo sobre a transmissão da propriedade, o que só ocorre de forma eventual, e considerados os fatores subjetivos de cada negociação. Neste caso, a base de cálculo pode variar, devendo ser buscada na realidade de cada operação o que motivou o preço ser superior ou inferior ao cadastrado. É inegável que a base de cálculo é o “valor venal”, conforme determina a lei, mas nesta hipótese de incidência sobre a translação da propriedade, há de se levar em conta a subjetividade da operação de transmissão da propriedade, conforme apurado em concreto em cada operação individualizada. A venda de dois apartamentos idênticos, no mesmo prédio, pode ocorrer por preços distintos, caso o proprietário de um deles esteja “argolado” em dívidas e necessite “fazer dinheiro” com rapidez, por exemplo. Ou mesmo, em sentido contrário, a venda de um deles seja feita com armários embutidos e outras benfeitorias, o que pode fazer seu preço ser superior. Aqui a propriedade possui um sentido dinâmico, pois ocorre de uma transação, o que afasta o singelo e direto uso do cadastro imobiliário para amparar a tributação, devendo ser usado como base de cálculo o efetivo “valor venal” da operação translativa da propriedade.
A quem tiver interesse sobre o tema, sugiro a leitura do profundo texto de Ricardo Mariz de Oliveira, que debate aspectos jurídicos que não cabem neste espaço.
O fato é que a distinção me parece legal e correta, e trilha o caminho de maior justiça fiscal. Claro que isso requererá maior empenho dos Fiscos municipais em averiguar individualmente cada operação de transmissão, visando coibir fraudes, que jamais poderão estar acobertadas por essa decisão do STJ, o que implicará em um esforço fiscalizatório, possivelmente ampliando o contencioso fiscal.
Revista Consultor Jurídico.