Aplicação do princípio da candura perante a corte pelo STJ

Cássio Aurelio Servidone e Maria Amelia Mastrorosa Vianna

Pode-se dizer finalmente que a candura processual está em consonância inclusive com princípios da Lei de Proteção de Dados, no que se refere ao dever de transparência e legitimo interesse da parte.

O Superior Tribunal de Justiça no mês de junho desse ano negou provimento a Agravo Interno em Embargos de Declaração no Recurso em Mandado de Segurança 34.477 e aplicou o princípio da candura perante a Corte. O princípio é utilizado no Estado de Massachusetts nos EUA e prevê que a parte tem o dever de sinceridade com o Tribunal, ainda que em discordância com os fatos e a lei aplicável no caso em julgamento.

A regra é estabelecida para evitar condutas que possam prejudicar a integridade processual. No caso em comento, o Superior Tribunal de Justiça aplicou o princípio e determinou a fixação de multa de 5% do valor atualizado da causa, fazendo uma relação de violação aos princípios da boa-fé processual e do dever de cooperação das partes, uma vez que o recorrente tentou fazer incidir tese vinculante expressamente rechaçada pelo próprio precedente. Note-se que em sistemas processuais amadurecidos reconhece-se não só a exigência de articulação dos fatos de acordo com a verdade, mas também que a parte exponha à Corte até mesmo os precedentes contrários a pretensão do seu cliente no recurso.

O Princípio da Candura Perante a Corte – Condor Toward the Court, que em sua tradução livre, significa “sinceridade para com o Tribunal”, fora abordado na decisão do AgInt nos EDcl no RMS: 34477 DF 2011/0109870-1 pelo STJ.

Tal princípio decorre do livro de Regras e ordens da Corte Suprema de Massachusetts1, a regra em questão é a de número 3.3.

Em curto relato, a norma diz que o advogado ainda que discorde dos fatos tem o dever de articulá-los conforme a verdade, deixando de fazer falsas declarações de fatos ou lei, não corroborar com testemunhos fraudulentos e quando souber que algum cliente esteja produzindo provas inverídicas, deve tomar as medidas necessárias.

O princípio foi estabelecido para evitar condutas que possam prejudicar a integridade do processo ou conduzir à corte em erro, deve, portanto, o profissional agir de forma que o tribunal não seja coagido erroneamente ou que seja contaminado por provas inverídicas e falsas declarações de direito, independentemente da vontade de seu cliente.

Adentrando na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, importante destacar que o princípio da candura foi utilizado, através de uma relação com o princípio da boa-fé processual e do dever de cooperação das partes:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ATUALIZAÇÃO DE QUINTOS INCORPORADOS. MANUTENÇÃO DE PAGAMENTO APÓS JULGAMENTO ADMINISTRATIVO. ERRO OPERACIONAL. IRRELEVÂNCIA. TESE REPETITIVA 1.009/STJ. INAPLICABILIDADE. MODULAÇÃO TEMPORAL EXPRESSA. INVOCAÇÃO DE PRECEDENTE VINCULANTE MANIFESTAMENTE INAPLICÁVEL. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE COOPERAÇÃO, BOA-FÉ E LEALDADE PROCESSUAL. PRINCÍPIO CANDOR TOWARD THE COURT (CANDURA PERANTE A CORTE). DUTY TO DISCLOSE ADVERSE AUTHORITY (DEVER DE EXPOSIÇÃO DE PRECEDENTE VINCULANTE ADVERSO). DESCABIMENTO MANIFESTO DA INSURGÊNCIA. MULTA. 1. O desconto de valores recebidos de boa-fé pelo servidor, quando decorrentes de erro operacional da administração, só é possível nos casos distribuídos após a publicação do acórdão em que se fixou a Tese de recurso repetitivo 1.009/STJ. 2. Em sistemas processuais com modelo de precedentes amadurecido, reconhece-se a exigência não só de que os patronos articulem os fatos conforme a verdade, mas que exponham à Corte até mesmo precedentes contrários à pretensão do cliente deles. Evidentemente, não precisam concordar com os precedentes adversos, mas devem apresentá-los aos julgadores, desenvolvendo argumentos de distinção e superação. Trata-se do princípio da candura perante a Corte (candor toward the Court) e do dever de expor precedente vinculante adverso (duty to disclose adverse authority). 3. O presente caso não exige tamanha densidade ética. No entanto, não se pode ter como razoável que a parte sustente a pretensão em precedente manifestamente contrário ao caso em tela, apontando-o como vinculante em hipótese que teve sua incidência patentemente excluída, por força de modulação, omitindo-se sobre a existência da exceção. 4. A invocação do precedente vinculante na hipótese temporal expressamente excluída de sua incidência pelo próprio julgamento controlador configura violação dos deveres de lealdade, de boa-fé e de cooperação processual, ensejando a aplicação da multa do art. 1.021, § 4º, do CPC/15, ante manifesta inadmissibilidade. 5. Agravo interno a que se nega provimento, com imposição de multa, fixada em 5% do valor atualizado da causa.

(STJ – AgInt nos EDcl no RMS: 34477 DF 2011/0109870-1, Data de Julgamento: 21/6/22, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/6/22)

O agravo em discussão teve o provimento negado com a imposição de multa em 5% do valor atualizado da causa. Segundo o Relator, a pretensão da agravante de fazer incidir tese vinculante na hipótese expressamente rechaçada pelo próprio precedente, configurou violação dos princípios da boa-fé processual e do dever de cooperação das partes, previstos nos artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil, de 2015.

Nessa toada, temos que os princípios se assemelham quanto o dever de sinceridade para com o juízo, entretanto, a norma americana se diferencia da brasileira na aplicabilidade, enquanto naquela, o recurso deve conter argumentações com teses favoráveis e desfavoráveis ao caso em julgamento, para que o julgador escolha a melhor opção para o caso. A legislação nacional determina que o recurso contenha articulações com fatos verdadeiros e as partes cooperem com o juízo, porém, sem precisar demonstrar teses contrárias ao precedente que pretende combater no processo.

Em paralelo, pode-se dizer finalmente que a candura processual está em consonância inclusive com princípios da Lei de Proteção de Dados, no que se refere ao dever de transparência e legitimo interesse da parte.

Fonte: Migalhas.

Publicado por BS & Advogados Associados,